Da boca para o corpo
Muito mais que garantir um sorriso bonito, cuidar rigorosamente dos dentes espelha saúde nos quatro cantos do organismo. E, aí, o portal por onde entram os nutrientes e de onde saem as palavras não abre alas para problemas sérios no estômago, nos pulmões e até no coração
Quem tem boca pode ir ao céu ou ao inferno. E esse destino só depende da atenção reservada a ela no dia-a-dia. Aqueles mandamentos que a gente conhece tão bem registrados no quadro ao lado , mas nem sempre segue à risca, não são apenas indispensáveis à preservação da língua, da gengiva e de cada dente. Eles também ajudam a evitar infortúnios em outras redondezas do corpo. Sem exagero. Uma saúde bucal deficiente repercute em cheio nos vasos sangüíneos, nas articulações e em órgãos que, aparentemente, não mantêm íntimo contato com os dentes. Só aparentemente.
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Não podemos enxergar a boca de maneira isolada, afirma a dentista Juliana Villalba, da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, no interior de São Paulo. A idéia resumida por essa frase inspirou a especialista a organizar o recém-lançado Odontologia e Saúde Geral, obra dirigida a profissionais de saúde, em especial médicos e dentistas. Ela reúne artigos científicos que exploram a relação direta entre os dentes e o resto do organismo. Juliana alerta, aliás, para a importância de o próprio dentista projetar seu olhar muito além da cavidade bucal. A princípio, o livro seria intitulado A boca também tem corpo, revela.
Basta folhear a obra para notar que a maioria dos estragos eclodidos na boca é protagonizada por uma infinidade de bactérias. Ora, a cavidade bucal é um verdadeiro Olimpo para esses microorganismos. E, justiça seja feita, nem todos eles são malignos ali existe uma flora bacteriana essencial à digestão dos alimentos, por exemplo. O problema é quando a escova e o fio dental são deixados de escanteio. Aí os micróbios nocivos, por trás das cáries, da gengivite e da periodontite, proliferam-se e levam ao caos. Mesmo em uma boca saudável, há 200 milhões de microorganismos em 1 grama de placa bacteriana, conta o periodontista Antonio Sallum, professor da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), vinculada à Unicamp. Se ela estiver a caminho da ruína, então, o número pode bater a casa do bilhão. E as ameaças também se multiplicam.
Se a gente mata a fome e se esquece da higiene bucal, poucas horas são suficientes para a formação da famigerada placa bacteriana. Num processo contínuo, micróbios e mais micróbios se unem para monopolizar os dentes e a gengiva. E é assim que a placa, também chamada biofilme, torna-se mais espessa, chegando às vezes ao ponto de ser vista a olho nu. Com os ventos a seu favor, as bactérias vilãs passam a subjugar as espécies do bem. A placa propicia o aparecimento de dois problemas: a cárie e a doença periodontal, diz o professor Antonio Sallum. A primeira, arquitetada pela bactéria Streptococcus mutans, mina aos poucos o próprio dente. Mas a segunda, que começa como uma gengivite e evolui para uma periodontite, é mais assustadora. Ela detona toda a estrutura que liga o dente à gengiva e ao tecido ósseo.
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A doença periodontal é mais assustadora, porque a cárie provoca dor e ela não. No começo, só produz sangramentos na gengiva, alerta Sallum. Ou seja, poucos lhe dão a devida atenção. São mais de 100 tipos de micróbios envolvidos com a patologia, que, se não tratada a tempo, faz os dentes desabarem. Ela é silenciosa e suas bactérias são mais agressivas, afirma a periodontista Elaine Escobar, professora das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo. De cair o queixo também é a estimativa da incidência do problema no país. Oito em cada dez brasileiros adultos têm desde uma gengivite até seu estágio avançado, a periodontite, conta Elaine.
As bactérias traiçoeiras fazem das lesões na gengiva e da corrosão do espaço entre dente e osso o seu portão de embarque para a corrente sangüínea. Alguns tipos mais terríveis compram, então, o bilhete para viajar até o coração, onde simplesmente estacionam. A doença periodontal aumenta o risco de problemas cardiovasculares, constata Elaine. Pior ainda para quem já tem um defeito em uma válvula cardíaca, por exemplo esse sujeito fica, então, tremendamente suscetível à endocardite. Quando vamos ver, de cada dez pacientes com essa doença, de alta mortalidade, quatro ou cinco têm as bactérias na cavidade bucal, calcula a cirurgiã- dentista Itamara Neves, do Instituto do Coração de São Paulo (INCOR).
Outra constatação recente é que pessoas com níveis de colesterol e triglicérides elevados podem ser reféns do ataque desses micróbios às artérias. Há trabalhos recentes demonstrando que algumas bactérias colaboram na formação de placas nos vasos sangüíneos, agravando o entupimento provocado pela gordura, conta Juliana Villalba. As agressoras, portanto, tornam-se o gatilho para a erupção de um infarto ou um derrame (veja o infográfico ao lado).
PERIGO EM DOSE DUPLA
O conflito que começa na boca semeia o suplício no corpo inteiro, principalmente se o dono dele for um diabético ou uma gestante. No caso das grávidas, a doença periodontal estimula o parto prematuro. Isso porque, quando as células de defesa rumam até a cavidade bucal para lutar com as bactérias, também liberam na circulação algumas substâncias as citocinas e as prostaglandinas que desregulam algumas funções em outros locais do organismo. E essas substâncias costumam acelerar o trabalho de parto, resume Sallum.
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Os diabéticos são um caso à parte. Vivem numa situação duplamente complicada. O açúcar que se acumula na circulação por causa do distúrbio favorece todo tipo de problema de inflamações a abscessos nas mucosas. E, se nada disso é tratado, a produção de substâncias inflamatórias é tal que desencadeia de vez uma série de mecanismos no organismo, inclusive aquele que faz a insulina ser utilizada direito. O professor Sallum é categórico: Problemas como a doença periodontal alimentam o diabete. Há indícios de que, quando ela é resolvida, a glicemia fica sob controle com maior facilidade.
Todo mundo sabe, mas não custa reforçar: além da prevenção diária, a visita ao dentista é pré-requisito de uma boca em ordem. Até porque existem problemas, como restaurações em decadência e dentes mal posicionados, que só podem ser resolvidos no consultório. E saiba que, quando não remediados, eles só oferecem mais dor de cabeça à sua vida. Literalmente. Setenta por cento das disfunções temporomandibulares (DTM) são relacionadas ao mau posicionamento dos dentes, conta o especialista em reabilitação oral Lauro Delgado, de São Paulo. E, por sua vez, a tal DTM é que muitas vezes aciona o incômodo constante na cabeça (acompanhe o infográfico à esquerda).
Médicos do Ambulatório de Cefaléias do Hospital das Clínicas de Belo Horizonte (HCUFMG)analisaram 53 pacientes que viviam com dor e chegaram à conclusão de que 80% das queixas eram associadas à DTM. Não vale determinar uma relação de causa e efeito entre os dois problemas, diz o neurologista Antônio Teixeira, um dos autores da pesquisa. Mas o tratamento da DTM pode contribuir para o alívio do tormento, completa ele, que é professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Depois de tantas evidências, já deu para perceber que dentes saudáveis afastam males da cabeça aos pés. E isso, sim, é motivo de infindáveis sorrisos.
Fonte: Revista Saúde