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História do Processo de Individualização da Criança: Reflexos na Odontologia

A visão e o interesse que se tem pela criança hoje em dia, bem como o relacionamento entre o adulto e a criança, sofreram importantes mudanças ao longo do tempo
Carie em crianças, como prevenir?

Autora:  Profa. Dra. Andiara De Rossi

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Resumo
A visão e o interesse que se tem pela criança hoje em dia, bem como o relacionamento entre o adulto e a criança, sofreram importantes mudanças ao longo do tempo. A individualização da criança é importante nos direcionamentos de atitudes em Odontopediatria. O conhecimento da atenção à  criança a partir de uma perspectiva histórica permite fornece elementos para que se busque a compreensão de seu sentido e significado dentro de um contexto mais amplo. Este artigo tem como objetivo apresentar as diferentes concepções da criança e de sua educação dentro da família em diferentes contextos sócio-histórico-culturais, que culminaram com a criação da especialidade de Odontopediatria.

 

Artigo
Historicamente, a Odontologia se direcionou para o atendimento de crianças a partir dos 6 anos de idade, deixando em planos secundários a atenção voltada para a gestante e para o bebê (paciente na faixa de zero a três anos de idade). Este fato, ocorreu principalmente devido a problemas referentes ao acúmulo de doença, ao estabelecimento de prioridades e à deficiência de recursos humanos e financeiros na área da saúde bucal. Ainda hoje, um fator que limita a atenção odontológica aos bebês é a influência cultural da população, incluindo profissionais de saúde, que acredita não ser necessário o tratamento odontológico até que a dentição decídua esteja completa, ou até os 3 anos de idade, quando a criança apresenta condições psicológicas que possibilitem seu atendimento. Entretanto, diante dos novos conhecimentos sobre psicologia infantil e sobre a importância da manutenção dos dentes decíduos no arco, até sua esfoliação, os conceitos sobre o atendimento Odontopediátrico sofreram profundas e importantes transformações.
Durante séculos predominou na Europa ocidental uma consciência “naturalista” da vida e da passagem do tempo. Até o século XIX existia uma sociedade rural que atribuía à terra-mãe a origem de toda forma de vida. A terra, considerada fonte de fertilidade, era responsável pelo início e pelo final da vida. Os ritos de fertilidade eram realizados em pedras, árvores e fontes como se a semente da criança estivesse na natureza. O indivíduo saía da terra, através de sua concepção, e a ela voltava através da morte. Sob a terra estavam almas de ancestrais esperando reencarnação. Existia o hábito de dar às crianças o nome dos avós para assegurar a continuidade da família. Nada era mais grave que a esterilidade do casal, pois interrompia a continuidade da linhagem. Assim, existia a idéia de um mundo pleno, uma grande família de vivos e mortos, sempre igual em número.
O arco da vida, o qual o mundo seguia, consistia em uma renovação sem fim que estabelecia um ciclo vital circular de sucessão de gerações. Nesse contexto, o corpo da pessoa não era apenas seu mas sim da família toda e dos ancestrais mortos. Havia uma contradição entre o o corpo coletivo, que garantia continuidade da linhagem, e o corpo individual e autônomo, no qual o indivíduo poderia “viver a própria vida”. O corpo não era autonomia da pessoa. O indivíduo dispunha do próprio corpo apenas se não contrariasse os interesses da família, não podendo assim viver a vida de sua maneira.
A criança também era considerada como parte do corpo coletivo. Nesse sentido era uma criança pública. No entanto, ao nascimento era incapaz de satisfazer suas necessidades vitais sozinha. Assim, tinha um estreito laço de união com a mãe, o que a tornava privada. Ao desmamar, aos 24 ou 30 meses, a criança passava a ter uma educação pública. O público e o privado coexistiam na criança que dependia tanto de um como de outro. Ainda, a criança nascia em local privado, na casa de seus pais, mas tal ato tornava-se público na presença de parentes e vizinhos. Os primeiros passos eram simbólicos, um ritual público para demonstração da continuidade da linhagem, e por isso realizados no local onde repousavam os ancestrais: cemitério ou igreja.
A primeira infância era a época das aprendizagens. Aprendizagem do espaço da casa, aldeia, das redondezas, das regras da cominidade, dos brinquedos e da relação com outras crianças da mesma idade ou mais velhas. A partir de 7 e 8 anos, os meninos iam com o pai aos campos e as meninas ficavam com a mãe aprendendo seu futuro papel de mulher. A educação da criança e adolescente visava o fortalecimento do corpo, dos sentidos e a transmissão da vida, assegurando a continuidade da família. Assim, a educação era comum a todos e havia pouca intimidade
No final do século XIV, surgem sinais de uma nova relação com a criança nos meios abastados da cidade. Trata-se de uma vontade cada vez mais forte de preservar a vida, reduzindo as demonstrações de afetividade. No começo da década de 1580, quando o filho de Scevole estava quase perdendo um filho doente, desacreditado pelos médicos, passou a pesquisar tudo relacionado às crianças e os segredos da física e da natureza. Como era muito inteligente, evitou a morte do filho. Ficou conhecido por ressaltar a meneira de alimentação das crianças em um poema. Essa atitude representa as novas elites sociais do Renascimento.
Essa vontade de salvar a criança aumenta no século XVII, e madame de Sévigné expressa bem essa vontade quando sua neta fica doente e ela diz; “não quero que ela morra”. Antes os pais também não aceitavam a perda do filho e buscavam cuidados médicos mas a consciência do ciclo vital era diferente e o único recurso para eles após a morte era ter outro filho.
A recusa da doença da criança constitui um aspecto de uma nova consciência da vida e do tempo. A vontade de curar, revela um novo olhar que o homem lança sobre si mesmo. Entretanto, os médicos não davam conta de atender a demanda de cuidados que surgia por toda parte. Nesse contexto ressaltou-se a idéia da prevenção das doenças. A prevenção era o meio eficaz para os pais preservarem a saúde de seus filhos, sem o recurso da medicina. Atualmente esse contexto de prevenção das doenças ainda é enfatizado juntamente com a promoção de saúde, ou seja sabe-se que a forma mais eficaz de prevenir a doença é promovendo a saúde.
Inicia-se o dilema entre a continuidade da linhagem e o crescente desejo do indivíduo de viver plenamente sua vida e dela dispor com liberdade. Até então o indivíduo não se preocupava consigo mesmo e agora passa a pensar em seus próprios interesses e aprende que o tempo é seu: o tempo de viver. Visando resolver o dilema entre o desejo de viver e a vontade de perpetuar, os comportamentos familiares começam a se modificar.
No século XVIII, a Revolução Industrial altera a economia para a propriedade privada. O surgimento do espírito calculista, originado da propriedade privada, não se restringe ao comércio. A medida que o poder do indivíduo aumenta, o espírito da linhagem enfraquece. Antes os vínculos parentais eram carnais, de propriedade coletiva do corpo, mas agora os vínculos começam a se dissociar, o corpo passa a ser individual. Cada indivíduo protege o seu corpo do sofrimento e passa a perpetuá-lo através dos filhos. Através dos filhos os indivíduos podem assegurar suas propriedades privadas através de heranças, única forma de manter os bens da família como individuais. Inicia-se a valorização da criança como bem privado e não da coletivo, um meio de assegurar a propriedade conquistada.
Uma consciência linear de existência e de tempo progressivamente sucede a consciência do ciclo vital circular, inicialmente entre os setores ricos, nas grandes cidades e depois nos burgos e no campo. Nesse contexto cada indivíduo tem seu próprio peso, seu poder e sua própria personalidade na estrutura familiar. A família recolhe-se a um espaço doméstico mais íntimo. A estreita relação com a terra mãe tende a desaparecer, há menos lugar no tempo para consagrar os ancestrais e os problemas de esterilidade dos casais não se resolvem com rituais naturais mágicos, como na consciência do ciclo vital circular.
Na primeira parte do século XVIII, já se evidencia um novo sentimento da infância, uma mudança cultural que ocorre durante um período de tempo extenso, sem cronologia precisa. Sabe-se que com o surgimento das cidades (Itália, França e Inglaterra) a família moderna fica reduzida ao casal e aos filhos. Logo que nasciam, as crianças entravam num universo de coibições, representados pelo uso de faixas, que lhe impediam total movimentação corporal, e de tocas e gorros que deformavam a cabeça. Nessa nova etapa, a criança podia ainda receber aleitamento por uma ama estranha à família. Os moralistas desaconselhavam esta prática pois acreditavam que era perigoso para uma criança ainda “inacabada” ser alimentada por uma mercenária pois, na consciência naturalista o aleitamento era considerado uma tranfusão de espíritos da natureza, e a identidade da criança corria o risco de ser afetada. Essa separação temporária entre mãe e filho muitas vezes resultava na morte do bebê e era condenada por alguns.
Valores diferentes impoem-se na vida urbana, muito diferentes da vida rural anterior. No ciclo vital, a posição da mulher está apenas como reprodutora. Podia-se escolher entre entregar ou não o filho a uma ama. A natureza continuava falar em favor do filho criado pela mãe. Assim, as questões começam a receber respostas variadas. Alguns pais entregavam seus filhos à nutriz e outros encontravam na companhia dele “divertimento e alegria”.
Com as novas relações estabelecidas com a criança, os novos pais, “apaixonados demais pelos filhos” influenciam o comportamento de seus filhos e poderiam não perceber o mal que lhes faziam ao mimá-los, deixando fazer tudo que queriam, e passariam maus-hábitos para a vida adulta. A educação privada conferia muito espaço para a afetividade.
Assim, a longo do século XVII, a Igreja e o Estado retomam o sistema educativo, numa transferência do privado ao público, visando principalmente controlar a sociedade e modelar a criança para o novo Estado-Nação. Essa nova cultura educativa se estabelece nos colégios, que recebem aprovação dos pais, convencidos que é preciso reprimir instintos primários de seus filhos e sujeitar seus desejos ao controle da razão. Colocar o filho na escola significa tirar da natureza. A nova educação modela as mentes seguindo a tendência do individualismo. A consciência de vida não visa o respeito às antigas solidariedades, mas a valorização do indivíduo e o fornecimento de conhecimento que seus pais não poderiam dar. Assim se dá a passagem da família tronco à família nuclear e de um sistema de educação pública e comunitária a uma educação pública do tipo escolar visando integrar a criança na coletividade.
O papel mais importante da Igreja e do Estado foi na difusão de modelos ideológicos que “privatizavam” a imagem da criança na sociedade. Isso fortalece a emergência da criança como indivíduo na sociedade ocidental. A Igreja difunde dois modelos de criança: criança mística e Criança-Cristo. A imagem do homem santo estava no menino santo: idéia da santidade infantil. A infância mística, de dedicação à Deus propunha a posteridade em nível espiritual, levando a ruptura do ciclo naturalista da vida e do tempo.
A criança, para fazer sua aprendizagem essencial, sempre dependeu ao mesmo tempo do “público”, do exterior, e do “privado”, dos pais. Algumas vezes dependendo mais de um que de outro, dependendo dos séculos. Assim, o estudo da situação da criança remete a níveis de representações e práticas. Em síntese, o sentido da evolução é aparentemente claro: cada vez mais se atribui à criança a posição que hoje ela ocupa na família.
De acordo com o autor, é difícil acreditar que a um período de indiferença com relação a criança teria suscedido outro durante o qual, com ajuda do “progresso” e da “civilização”, teria prevalecido o interesse. “O interesse ou a indiferença com relação à criança não são realmente característica desse ou daquele período da história. As duas atitudes coexistem no seio de uma mesma sociedade, uma prevalescendo sobre a outra em determinado momento por motivos culturais e sociais que nem sempre é fácil distinguir.” A indiferença medieval pela criança é uma fábula pois, como vimos, os pais se preocupavam com a saúde e com a cura de seus filhos.
Assim, devemos interpretar o “sentimento da infância” no século XVIII, quer dizer; “nosso sentimento da infância”, como sintoma de uma profunda transformação nas crenças e estruturas de pensamento da atitude ocidental com relação a vida e ao corpo. A um imaginário da vida de linhagem e comunidade que substituiu o da família nuclear. A uma situação em que o “público” e o “privado” desempenhavam seu papel na formação da criança, sucedeu outra que amplia o direito da mãe e, sobretudo, do pai sobre o filho. No individualismo crescente, disposto a favorecer o desenvolvimento da criança encorajado pela Igreja e pelo Estado, o casal delegou parte de seus poderes ao educador. Ao modelo rural suscedeu o modelo urbano e o desejo de ter filhos não para assegurar a continuidade do ciclo, mas simplesmente para amá-los e ser amados por eles.
Os reflexos dessas mudanças também aparecem na Odontologia, data de 1897 o primeiro registro de serviços profissionais dedicados à criança, e de 1925 o primeiro livro sobre Odontologia Infantil, ambos nos EUA. No Brasil, em 1923 Pereira lança o livro Educação Dentária da Criança, enfatizando que “é necessário começar a profilaxia de cárie no ventre materno, com formação de órgãos dentários sadios e bem calcificados”, já preconizando a necessidade de limpeza dos dentes logo que irrompessem. O primeiro relato de atenção Odontológica voltada para bebês, data de 1986, com a criação da Clínica de Bebês da Universidade Estadual de Londrina (UEL), que oferece medidas educativas direcionadas aos pais, além de tratamento Odontológico direcionado especificamente aos bebês. O programa, que dura 15 anos, mostra seus resultados positivos a favor de uma Odontologia preventiva, e transfere esta prática ao setor público, Universidades e profissionais que exercem atividades em clínica particular. A partir de então, surgiram diversos relatos na literatura sobre experiências com bebês, como o de Goepferd, sobre um trabalho desenvolvido durante 18 meses, que envolveu a participação de 180 bebês em um Programa de Saúde Bucal na Universidade de IOWA. Desta experiência, concluiu-se que o contato com os pais e crianças, por meio da demonstração de técnicas de higiene bucal e avaliação individual da situação familiar foram imperativos para a obtenção de ótimos resultados em saúde bucal.

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REFERÊNCIAS
1. CALDANA, R. H. L., BIASOLI ALVES,, Z. M. M. Psicologia do desenvolvimento: contribuição à Odontopediatria. Rev. Odont. USP, v. 4, p. 256-60, 1990.
2. GÉLIS, J. A Individualização da Criança. In: Chartier, R. (org). História da vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. SP: Cia das Letras, 1991.
3. TORRIANI, D.D. Análise do comportamento de bebês durante o atendimento odontológico: relação entre sexo, idade e dentes irrompidos. 1999. 139f. Dissertação (Mestrado em Odontologia)- Faculdade de Odontologia de Araçatuba, Universidade Estadual Paulista “ Júlio de Mesquita Filho”, Araçatuba.
4. WALTER, L.R.F.; FERELLE, A.; ISSAO, M. Odontologia para o Bebê. São Paulo: Artes Médicas, 1996.

 

Sobre a Autora:

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Cirurgiã-Dentista, Especialista em Odontopediatria
Mestre em Odontopediatria pela Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto – USP
Doutora em Patologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP
Pós-doutoranda em Odontopediatria pela Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto – USP

 

contato: andiaraderossi@bol.com.br

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