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Dona Tereza morava em um dos pequenos prédios do BNH do outro lado da praça Elis Regina e apareceu naquela manhã com a energia de sempre, cheia de humor, bem vestida e maquiada apesar dos seus 70 anos.
– Doutore Vitor, esse dente maledeto não me deixou dormir essa noite. – foi logo dizendo quando entrou na minha sala.
O sotaque vinha do fato de Tereza ser filha de imigrantes italianos. Mas era paulistana da gema e com muito orgulho, como gostava de gabar-se.
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– Então senta aí Tereza e vamos garantir o sono desta noite – brinquei com ela.
Nunca a chamava de “Dona” como todo mundo fazia no bairro. Achava que não era justo com sua jovialidade e bom humor. Era viúva há muito anos, mas não se deixou encharcar pela amargura da solidão e usava seu tempo em atividades na paróquia do bairro.
– Qual o dente que dói Tereza? – e ela colocou o dedo em cima do incisivo lateral inferior direito, no jargão técnico, o dente 42.
Fiz os testes para verificar a vitalidade, radiografei e conclui que ele era de fato o culpado de provocar a insônia da Tereza, que ficou contente com a descoberta. Anestesiei, abri o danadinho – que de fato estava com a polpa necrosada – coloquei um curativo, passei uma receita e lá se foi ela toda contente.
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Duas horas depois o telefone tocou. Era Dona Tereza dizendo que o dente voltara a doer mais ainda do que antes.
– Vem prá cá Tereza – e desliguei o telefone, frustrado.
Ela chegou com carinha de dor. Removi o curativo, fiz todos os procedimentos da cartilha e receitei um analgésico junto.
Fui almoçar e quando voltei, Dona Tereza estava na porta do consultório com a mão na boca.
– Doutore, num adiantou nem “os curativo” e nem “os remédio”. O maledeto voltou a doer!! – disse ela enquanto subíamos a escada da clinica.
Removi o curativo, irriguei e resolvi deixar o dente aberto, por via das dúvidas.
– Vamos ver se agora para de doer. Vou até reza prá Santa Luzia, doutore!! – Disse com uma pontinha de descrença na minha ciência.
– Não, Tereza: melhor rezar para Santa Apolônia! – Retruquei enquanto abria a porta do consultório para ela.
– Ma que Santa é essa que eu nunca ouvi falar? – perguntou, encarando-me curiosa.
– Ah! É a protetora dos dentistas! – Respondi.
– Ma que!! Ela devia é “protege os pobre” que tão com dor de dente que nem io!
– Mas ela protege também, Tereza. Pode confiar.
– Eco, olha quem tá falando de Santa: o doutore que é um agnos-sei-lá-o-que! – me provocou dando uma gargalhada.
– Agnóstico, Tereza. Agnóstico.
– Que seja, bello! Vou saber dessa santa! – e saiu cantarolando uma música em italiano como gostava de fazer.
Duas horas depois o telefone tocou. A secretária avisou que era a Dona Tereza.
– Ái Jesus! – exclamei, mas atendi.
– Doutore Vitor! Doutore Vitor!! Aconteceu um milagre! Um milagre da Santa Apolônia!! To indo aí! – e desligou o telefone.
Dez minutos depois, entrou esbaforida com um toquinho de vela na mão.
– Doutore! Essa Santa “dos dentista” é forte mesmo, viu?
– Parou de doer? – Perguntei ansioso.
– Sim e não! Escuta só. Quando cheguei em casa, acendi esta vela para a Santa Apolônia e pedi: – Santinha, quando a vela acabar faz parar de doer esse farabutto, com o perdão da palavra. Quando a vela acabou de queimar adivinhe o que aconteceu?
– O dente parou de doer! – respondi.
– Sim, o que estava aberto parou, mas a dor passou pro dente do lado, pro vizinho!!
Ainda incrédulo, sentei-a na cadeira, fiz os teste básicos e bingo!! O dente vizinho, o vulgo 41, também estava com a polpa necrosada! Por isso a dor não passava. Fiz as honras da casa para ele também.
Depois da sessão, toda contente, Tereza queria saber quanto tinha ficado a brincadeira. Passei o valor, ela me deu o dinheiro, mas advertiu-me, toda séria:
– Doutore, metade desse dinheiro é seu, mas a outra metade é da Santa! Vê se me vai na igreja uma vez na vida e doa a parte dela prá caridade. Um bacio!!
E saiu feliz da vida cantarolando uma canção italiana.
Vitor Ribeiro
Cirurgião-Dentista, Educador e Jornalista